segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Foucault: o historiador dos pensamentos

Em suas arqueologias, o intelectual francês questionou conceitos antes pouco explorados como loucura, sexualidade e punição, e mostrou que, muitas vezes, o certo é apenas uma convenção disciplinar

















MICHEL FOUCAULT (1926 – 1984) Ocupou a cadeira do Collège de France de 1970 até sua morte. Sua obra é associada com diversos sistemas do século XX, como estruturalismo, pós estruturalismo e pós-modernismo. Ao revolucionar e questionar as noções de sujeito, sexualidade e poder, o francês se tornou um dos pensadores mais conhecidos do séc. XX

Todos sabem que, na França, há poucos lógicos, mas que houve um número razoável de historiadores das ciências. Sabe-se também que eles ocuparam na instituição filosófica – ensino ou pesquisa – um lugar considerável.” Com esta bela fórmula Foucault inicia o último texto que publicou em vida, nomeado de A Vida: a experiência e a ciência (1984). Ela apresenta e contextualiza aquilo que para ele representava as duas maiores tradições do pensamento filosófico francês durante a primeira metade do século XX. A filosofia do sujeito, personificada pelo existencialismo francês e a filosofia do saber, representada por uma epistemologia histórica. Mas talvez a maior beleza contida na fórmula acima é que ela nos mostra como Foucault se via no cenário pintado por ele mesmo. Foucault era natural da cidade de Poitiers, Sudoeste da França, famosa porque em sua proximidade ocorreram três das mais importantes batalhas da história da França: sendo a de 19 de setembro de 1356 , durante a Guerra dos Cem Anos, a mais famosa. Ele se refere sobre sua cidade natal num cartão postal de 1981 do seguinte modo: “Assim é a cidade em que nasci: santos decapitados, o livro na mão, cuidam para que a justiça seja justa, os castelos sejam fortes... Eis o berço de minha sabedoria”. Batizado Paul-Michel, nasceu em 15 de outubro de 1926. Era o segundo filho de Paul-André Foucault e de Anne-Marie Malapert. Sua irmã, mais velha, chamava-se Francine, e o caçula da família, Denys.

Didier Éribon, autor da biografia oficial e, provavelmente ainda a mais confiável sobre Michel Foucault, é enfático sobre dois traços bastante marcantes da família do francês: o nome Paul, que atravessa pelo menos três gerações seguidas; e a profissão, uma família de médicos, por parte de pai e mãe, que deveria também ser trilhada por Paul-Michel. Duas tradições, aliás, que Foucault se encarregara de quebrar. Nos documentos oficiais e nos registros escolares, ele se chama Paul. Para sua mãe e familiares, era Paul- Michel. Mas para ele mesmo e para todos nós que nos encantamos ou nos inquietamos com seu pensamento, é somente Michel Foucault.


Em História da loucura na idade clássica (1961), Foucault argumenta que, durante a idade média, os loucos haviam ocupado o lugar de excluídos da sociedade, antes reservado aos leprosos. Para ele, a clínica psiquiátrica moderna ainda mantinha uma padrão de brutalidade ao obrigar os insanos a internalizar os mecanismos de punição

UM HISTORIADOR DAS RACIONALIDADES

Mas quem foi Michel Foucault? Um filósofo, um historiador? Independente e mesmo antes de todas e quaisquer categorias a que poderíamos recorrer para “classificá-lo”, ele foi um pensador. Autor de uma vasta obra, composta de praticamente uma dezena de livros, inúmeros artigos, conferências, palestras, prefácios e posfácios, sem falar nas entrevistas e cursos; dotado de uma formidável curiosidade intelectual, seus textos versam sobre uma gama bastante variada e ampla de assuntos: loucura, medicina clínica, a formação das ciências humanas, as práticas punitivas e de vigilância, sexualidade, práticas morais e subjetividade, e tantos outros temas “menores” que nos lançam à dificuldade radicalizada ao tentarmos definir sob quais registros, em que disciplina classificar seu pensamento. A variedade de temas em Foucault é tão grande que a edição brasileira de seus Ditos e Escritos, organizada tematicamente (e não cronologicamente como a edição francesa), é apresentada em cinco grandes conjuntos de temas: problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise (vol. I); arqueologia das ciências e histórica dos sistemas de pensamento (vol. II); estética: literatura e pintura, música e cinema (vol. III); estratégia, poder-saber (vol. IV); e ética, sexualidade, política (vol. V).Contudo, a filosofia e a história são essenciais no pensamento de Michel Foucault; um filósofo que adotou a história como um estilo de escrita e de reflexão; ou ainda um historiador peculiar, ao levantar e trazer ao terreno da historiografia questões caras à filosofia. Enfim, como ele gostava de definir, seus trabalhos são “fragmentos de filosofia no canteiro da história”.

Na fórmula do início desse texto, Foucault deixa claro suas vinculações teóricas com a tradição da epistemologia historiográfica, que tem nas figuras de Gaston Bachelard (1884-1962), Alexandre Koyré (1882/1892-1964), Georges Canguilhem (1904- 1995) e Jean Cavaillès (1903-1944) seus grandes representantes. A tese principal desses teóricos, chamada de racionalismo regional, é de que a razão não existe, o que existe são racionalidades. Quer dizer, cada ciência, cada teoria científica é constituída de seu próprio aparato racional, não necessariamente dependente de algo externo (uma outra ciência ou uma outra teoria, por exemplo); embora possa herdar desse “algo” externo elementos fundamentais para a sua constituição teórica. Assim, investigar a racionalidade de uma ciência ou de uma teoria científica consiste num estudo dessa ciência ou dessa teoria em seu próprio exercício efetivo na história. Como bem observa Georges Canguilhem,

"O objeto do discurso histórico é, com efeito, a historicidade do discurso científico, enquanto essa historicidade representa a efetuação de um projeto interiormente submetido a normas, mas atravessada por acidentes, atrasada ou desviada por obstáculos, interrompida por crises, isto é, por momentos de julgamento e de verdade. [...] Portanto, a história das ciências [...] não se relaciona somente com um grupo de ciências sem coesão intrínseca, mas também com a não-ciência, com a ideologia, com a prática política e social.”

O JOVEM EM BUSCA DA LOUCURA

Entre os anos de 1955 e 1958, o jovem Paul-Michel reside em Uppsala, famosa por ser uma cidade eminentemente universitária, situada a 70 km ao norte de Estocolmo, na Suécia. A convite de Georges Dumézil – eminente mitólogo e historiador das religiões indo-européias – a quem Foucault sempre reconheceu dever intel ectualmente, trabalha aí como diretor da Maison de France e como leitor de francês. Logo após se instalar em Uppsala, descobre a Carolina Rediviva – a imponente biblioteca daquela universidade. A partir dos arquivos sobre a história da medicina, do século XVI ao começo do XX que Foucault se debruça a fim de coletar a base material para o que viria a ser sua tese de doutorado; mais conhecida por seus leitores como História da Loucura, escrita “ao longo da noite sueca”, como dizia em seu prefácio para a primeira edição, escrito em fevereiro de 1960, em Hamburgo.

A novidade de Foucault consiste na recusa
metódica de qualquer linearidade temporal da história

Desejoso de defender seu livro sobre a loucura como tese de doutorado, Foucault volta à Paris em busca de um relator. Sua primeira opção é Jean Hypollite, seu ex-professor na École Normale Supérieure. Mas este recomenda alguém mais afeito às questões e ao tema “médico-psiquiátrico” do livro: o epistemólogo Georges Canguilhem. Foucault, apesar de um tanto receoso quanto à indicação – pois não tivera até então muito sucesso nas ocasiões em que se deparou com este homem de temperamento forte e explosivo – vai ao seu encontro. Explica-lhe o que pretendeu fazer. Canguilhem apenas escuta e bruscamente confirma os temores do pupilo respondendo (segundo o biógrafo de Foucault, Daniel Defert): “Se isso fosse verdade, a gente saberia”. Mesmo assim, lê o manuscrito de quase mil páginas e sem hesitar aceita ser o relator da tese de Foucault. Trinta anos após esse livro, Canguilhem afirmaria “... se há em meu trabalho universitário um momento com que me sinta feliz, ainda hoje, e de que possa me envaidecer comigo mesmo foi o de ter sido relator da tese de doutorado de Michel Foucault. [...] para mim, 1961 continua e continuará sendo o ano em que se descobriu um verdadeiro grande filósofo.”

E do que trata História da Loucura? Basicamente, pode-se dizer que sua meta consistiu em evidenciar as condições históricas, sociais, culturais, institucionais, morais, religiosas, jurídicas e científicas que possibilitaram a organização, o aparecimento e formação de toda uma gama de discursos, variados e distintos entre si, mas que se iniciam com o mesmo prefixo, “psi”. A estratégia consistia em mostrar como se formou a idéia de doença mental, objeto fundamental desses saberes de pretensão científica, a partir da “análise da percepção da loucura”. Desse modo era evidenciado o quanto de histórico há sobre um fato tomado como natural, ou seja, a loucura como fato patológico. É neste livro que ele se utiliza pela primeira vez do termo arqueologia. Uma arqueologia do silêncio.


Entre maio e junho de 1984, Foucault publica os volumes 2 e 3 de sua História da Sexualidade: O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si. E promete aos mais próximos que o quarto e último livro, As Confissões da Carne estará concluído em mais um ou dois meses. Promessa que não será cumprida. É um Foucault cansado e abatido, vitimado pela AIDS, que promete. Já não há mais tempo.

No dia 3 de junho, Foucault passa mal e desmaia em seu apartamento. É levado para uma clínica por seu irmão, Denys. No dia 9 é transferido para o Hospital de Salpêtrière, sobre o qual discorreu longamente em História da Loucura, sendo no dia seguinte transferido para unidade de terapia intensiva. No dia 20, ele tem uma ligeira melhora, e já no quarto recebe seus amigos, se diverte e comenta a recepção de seus dois últimos livros. Mas seu quadro clínico se agrava, e na tarde de 25 de junho de 1984, Michel Foucault falece. A comoção é geral. Em 29 de junho, numa cerimônia reservada, seu corpo é sepultado no cemitério de Vendeuvre-du- Poitou, próximo de Poitiers, sua cidade natal. Na saída do caixão com seu corpo do hospital, diante de uma multidão à espera, uma última homenagem lhe é prestada. Gilles Deleuze, seu amigo de longa data, com a voz embargada de emoção, lê um trecho do prefácio de O Uso dos prazeres, revelador da estirpe de pensador que foi Foucault (e que tomamos aqui como conclusão):

“Quanto ao motivo que me impeliu, era muito simples. Espero que para alguns ele baste por si mesmo. É a curiosidade – a única espécie de curiosidade, em todo o caso, que vale a pena praticar com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas aquela que permite se desligar de si mesmo.

[...] O que é, pois, a filosofia – quero dizer a atividade filosófica – se não é o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo. E se ela não consiste, ao invés de legitimar que já sabemos, em tentar saber como e até que ponto seria possível pensar diferentemente.”

Fonte: leituras da História

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