segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Os Pets dos Faraós
























No dia do enterro do touro, os citadinos assomavam às ruas para presenciar esse momento de luto. Soltando lamúrias, eles se apinhavam no trajeto até a catacumba. Seguindo em procissão, os sacerdotes, os cantores do templo e as augustas autoridades depositavam a múmia na rede de túneis em abóbada escavados nas formações rochosas de calcáreo. Ali, encerravam o animal mumificado em um sarcófago de granito ou madeira. Nos séculos vindouros, porém, a santidade do lugar seria violada por larápios que, forçando a tampa do sarcófago, saqueavam as múmias à procura de seus ornamentos. Nem uma única tumba do touro Ápis resistiu intacta.

Diferentes animais sagrados eram reverenciados. Salima acredita que a idéia de tal divindade surgiu no alvorecer da civilização egípcia, época em que chuvas mais pesadas que as atuais tornavam a terra verdejante e fértil. Convivendo com os animais, as pessoas passaram a associá-los a divindades de acordo com os hábitos de cada bicho. Os crocodilos, por exemplo. Por instinto, eles depositam seus ovos na futura linha-d'agua no ápice das cheias anuais do Nilo, evento fundamental que irrigava os campos, permitindo ao Egito renascer ano após ano. "Os crocodilos eram seres mágicos", diz Salima, "por terem essa habilidade de antever o futuro."

As indicações de que a cheia seria boa ou ruim eram importantes em uma terra de fazendeiros. Assim, com o tempo, os crocodilos tornaram-se símbolos de Sobek, um deus aquático da fertilidade, e um templo foi erigido em Kom Ombo, um dos lugares ao sul do Egito em que a cheia montante era observada em primeiro lugar todos os anos. Naquele espaço sagrado, próximo da barranca do rio onde os crocodilos selvagens tomavam banho de sol, seus parentes cativos levavam uma vida mansa e, ao morrer, eram sepultados com os devidos rituais.

As múmias eram, em sua maioria, objetos votivos ofertados durante os festivais anuais nos templos dedicados aos cultos de animais. Esses encontros animavam os centros religiosos ao longo do Nilo. Os peregrinos chegavam às centenas de milhares. A rota da procissão enchia-se de música e dança. Mercadores vendiam comida, bebida e lembranças. Os sacerdotes viravam homens de vendas, oferecendo tanto múmias enroladas com simplicidade como as mais elaboradas a quem podia pagar mais - ou achava que podia. Com o incenso circulando por toda parte, os fiéis encerravam sua jornada depositando suas múmias no templo, em meio a orações.

Alguns lugares eram associados a somente um deus e seu animal simbólico. Entretanto, antigos sítios de veneração, como Abidos, comportavam coleções completas de animais votivos mumificados, cada espécie relacionada a um deus em particular. Em Abidos, terreno fúnebre dos primeiros governantes do Egito, as escavações revelaram múmias que aparentemente representavam Thoth, o deus da sabedoria e da escrita. É provável que os falcões evocassem o deus dos céus, Horus, protetor dos reis vivos. Cães eram vinculados a Anúbis, o guardião dos mortos, com sua cabeça de chacal. Ao doar uma dessas múmias ao templo, o peregrino visava obter favores de seu deus. "A criatura estava sempre a sussurrar no ouvido da divindade: 'Aqui está seu devoto, seja bonzinho com ele'", explica Salima.

A partir da 26ª dinastia, por volta de 664 a.C., as múmias votivas tornaram-se bastante populares. O país acabara de expulsar seus governantes estrangeiros e os egípcios sentiam-se aliviados por retomar suas tradições. O negócio das múmias floresceu, empregando legiões de trabalhadores especializados. Os animais tinham de ser alimentados, cuidados, sacrificados e mumificados. Era preciso importar as resinas, preparar as bandagens e cavar as tumbas.

Apesar do significado religioso das oferendas, as fraudes grassavam na linha de produção. As análises de Salima com raio X revelaram toda variedade de abusos contra o consumidor: um animal mais barato substituindo um mais raro e caro; ossos ou penas no lugar do bicho completo; belas bandagens circundando nada além de barro. Quanto mais atraente a embalagem, maior a chance de fraude, constatou a cientista.

Para descobrir como os antigos embalsamadores trabalhavam - os textos da época silenciam -, Salima realiza experimentos de mumificação. Para os insumos, ela visita o centro do Cairo e, em uma lojinha, um funcionário se vale de uma velha balança de cobre para pesar cristais cinzentos em pedaços. Trata-se de natrão, o principal agente desidratante utilizado na mumificação, um tipo de sal que absorve umidade e gordura. O natrão ainda é extraído a sudoeste do delta do Nilo, e é vendido para uso em faxina, como a soda cáustica. No herbanário, a cientista encontra os óleos que farão com que corpos secos e duros se tornem flexíveis de novo, além de pedaços resinosos de olíbano que, derretidos, vão selar as bandagens. O vinho de palmeira que os antigos usavam para lavar as cavidades internas dos corpos depois da evisceração é substituído por um gim local.


Fonte:NAT GEO

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