sábado, 20 de fevereiro de 2010
Eusébio de Cesaréia
por Justo Gonzales
Se olho para o oriente, se olho para o ocidente, se olho por toda, a terra, e até se olho para o céu, sempre e em qualquer lugar eu vejo o Bem-aventurado Constantino dirigindo o mesmo império.
Eusébio de Cesaréia
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Provavelmente não havia em toda a igreja durante a primeira década do século IV, um cristão mais erudito que Eusébio de Cesaréia. Frases como a que citamos no começo deste capítulo, no entanto, têm levado muitos historiadores a afirmar que Eusébio capitulou diante do poder imperial. Na opinião destes historiadores, Eusébio era um homem de caráter débil que, ao se ver rodeado da pompa do Império, se dobrou diante dela, e se pés a servir aos interesses do imperador mais que aos de Jesus Cristo. Mas antes de arriscar fazer este julgamento convém que nos detenhamos para narrar rapidamente a vida e a obra deste sábio cristão, para desta forma compreender melhor suas reações e atitudes.
Eusébio nasceu por volta do ano 260, provavelmente na Palestina, onde ele passou a maior parte dos seus primeiros anos. Ele é conhecido como Eusébio “de Cesaréia” porque foi bispo desta cidade e porque foi educado nela, mas o lugar exato do seu nascimento nos é desconhecido.
Também não temos informações confiáveis sobre sua família. Nem sequer é possível dizer se seus pais eram cristãos ou não - e os eruditos que têm tentado pesquisar sobre este assunto encontraram argumentos nos dois sentidos.
Seja como for, quem teve o impacto profundo sobre a vida do jovem Eusébio foi Panfílio. Este era da cidade de Berito - hoje Beirute, no Líbano - mas tinha estudado em Alexandria, tendo por professor o célebre Piério, um dos continuadores; da obra de Orígenes. Algum tempo depois, tendo já ocupado alguns cargos importantes em Berito, Panfílio se transferiu para Cesaréia, para onde parece ter sido chamado pelo bispo desta cidade. Em Cesaréia, Orígenes tinha deixado sua biblioteca, que estava em poder da igreja, e Panfílio se dedicou a estudá-la, organizá-la e completá-la. Diversas pessoas o ajudaram nesta tarefa, inspiradas pela fé fervorosa e pela curiosidade intelectual do seu líder. Quando Eusébio conheceu Panfílio, sentiu-se cativado por esta fé e esta curiosidade. E sua devoção chegou a um ponto tal que ele chegou a se chamar anos mais tarde de "Eusébio de Panfílio", dando assim a entender que devia a seu mestre grande parte do que era.
Durante vários anos Panfílio, Eusébio e outros; trabalharam em equipe, provavelmente vivendo sob o mesmo teto e repartindo todos os seus gastos e receitas. Mais tarde o prazer de Panfílio nos livros foi superado pelo do seu discípulo, que, ao que parece, fez várias viagens em busca de documentos das origens do cristianismo. Durante este período Eusébio e Panfílio escreveram diversas obras, mas destas a única importante que foi conservada é a Crônica de Eusébio - e também esta em versões posteriores, aparentemente mal transmitidas.
Aquela época calma não poderia durar muito tempo. As perseguições ainda não tinham terminado, e a ameaça que sempre nublara o horizonte dos cristãos transformou-se no furacão da grande perseguição. Em junho de 303, a perseguição chegou à Cesaréia, e o primeiro mártir ofereceu sua vida. A partir de então, a tormenta foi amainando, até que em 305, Maximino Daza assumiu a dignidade imperial. Como já dissemos no volume anterior, Maximino Daza foi um dos mais tenazes inimigos do cristianismo. Em fins de 307, Panfílio foi encarcerado. Depois disto a tempestade diminuiu um pouco, e o célebre mestre cristão permaneceu no cárcere, sem ser executado, por mais de dois anos. Durante este período Panfílio e Eusébio escreveram juntos cinco livros de uma Apologia de Orígenes, a qual Eusébio acrescentou um sexto livro depois do martírio do seu mestre.
É impossível saber como Eusébio escapou da perseguição. Aparentemente ele se ausentou de Cesaréia pelo menos duas vezes, e é possível que o motivo da sua ausência tenha sido - pelo menos em parte - fugir das autoridades. Nesta época isto não era considerado indigno, pois o cristão tinha o dever de evitar o martírio, até que estivesse suficientemente provado que Deus o tinha escolhido para esta coroa gloriosa. De qualquer forma Eusébio não sofreu pessoalmente durante a perseguição, apesar de sofrer a perda de seu admirado mestre e de muitos dos seus companheiros mais chegados.
Em meio à perseguição, Eusébio continuou sua atividade literária. Precisamente durante este período ele revisou e ampliou sua obra mais importante, a História eclesiástica.
Se Eusébio não tivesse feito outra coisa em sua vida que escrever a História eclesiástica, isso já seria suficiente para ele ser contado entre os "gigantes" da igreja no século IV. De fato, em sua obra boa parte da história que narramos no primeiro volume se teria perdido, pois foi ele quem compilou, organizou e publicou quase tudo que sabemos de muitos cristãos que viveram nos primeiros séculos da existência da igreja. Além disso, a única coisa conservada da obra de muitos daqueles primeiros escritores cristãos são as extensas citações que Eusébio incluiu em sua História. Sem ele, enfim, nossos conhecimentos dos primeiros séculos da igreja estariam reduzidos à metade.
Em 311 a situação finalmente começou a mudar, com respeito à perseguição. Primeiro veio o edito de Galério. Depois Constantino venceu Majêncio; e Licínio e Constantino, reunidos em Milão, decretaram a tolerância religiosa. Para Eusébio e seus companheiros o que estava acontecendo era obra de Deus, semelhante aos milagres narrados no livro do Êxodo. A partir de então Eusébio - e provavelmente muitíssimos; outros cristãos; que não deixaram testemunho escrito das suas opiniões, como ele - começou a ver em Constantino e em Licínio instrumentos escolhidos por Deus para concretizar seus planos. Pouco depois, quando Constantino e Licínio começaram a guerra entre si, Eusébio estava convicto que a principal razão do conflito era que Licínio tinha perdido o juízo e começara a perseguir os cristãos. Por isto Eusébio sempre viu em Constantino o instrumento escolhido por Deus.
Finalmente, por Volta do ano 315, quando Licínio e Constantino começaram a dar sinais de que não estavam dispostos a repartir o poder por muito tempo, Eusébio foi eleito bispo de Cesaréia. Isto era uma responsabilidade muito grande, pois a perseguição tinha dispersado o seu rebanho, e era necessário assumir uma enorme tarefa de reconstrução. Além disso, a sede da Cesaréia tinha jurisdição sobre toda a Palestina, e por isso Eusébio tinha de se ocupar de assuntos que excediam em muito os limites da sua cidade. Em conseqüência sua produção literária diminuiu nos anos seguintes.
Eusébio não estava ainda muitos anos instalado em seu cargo de bispo quando uma nova tempestade veio turvar a calma da igreja. Tratava-se desta vez não de uma perseguição por parte do governo, mas de um gravíssimo problema teológico que produziu o cisma: a controvérsia ariana. Mais adiante dedicaremos um capítulo inteiro aos primeiros episódios desta controvérsia, e por isso não a discutiremos aqui. Basta dizer que a atuação de Eusébio nesta controvérsia deixou muito a desejar. Isto não se deu por Eusébio ter sido talvez hipócrita ou oportunista, como alguns historiadores têm afirmado, mas mais por seus interesses terem sido outros. Parece que Eusébio não compreendeu completamente todo o alcance da controvérsia, e a sua preocupação fundamental era a paz da igreja, mais que a exatidão teológica. Por isso, apesar de no começo ter simpatizado com a causa ariana, no concílio de Nicéia, ele se dispôs a condená-la, quando se deu conta dos perigos doutrinários que ela envolvia. Mas isso faz parte de outro capítulo.
Eusébio já travara conhecimento com Constantino antes deste ser imperador, quando visitou a Palestina no séqüito de Diocleciano. Em Nicéia, por ocasião do concílio, ele pôde vê-lo agindo em favor da unidade e do bem-estar da igreja, como "bispo dos bispos". Depois, em outras oportunidades, Eusébio teve entrevistas e correspondência com o imperador, Provavelmente o encontro mais notável teve lugar quando Constantino e sua corte se transferiram para Jerusalém, para dedicar a recém-construída igreja do Santo Sepulcro, como parte da celebração do trigésimo aniversário da ascensão de Constantino ao poder. A controvérsia ariana ainda fervia, e os bispos reunidos primeiro em Tiro e depois em Jerusalém estavam profundamente interessados nela, como o imperador também estava. Seja como for, Eusébio desempenhou um papel importante, e, por motivo da visita do imperador e da dedicação do novo templo, ele pronunciou um discurso em elogio a Constantino. Este discurso, que se conserva até os nossos dias, é uma das principais razões de Eusébio ter fama de adulador. Devemos, no entanto, julgar o discurso à luz dos costumes da época, em circunstâncias como essa. Deste ponto de vista o discurso resulta ser relativamente moderado.
Eusébio, de qualquer forma, não foi amigo íntimo nem cortesão de Constantino. Ele passou a maior parte da sua Vida em Cesaréia ou nas proximidades, ocupado com assuntos eclesiásticos, enquanto Constantino, quando não estava em Constantinopla, se encontrava em alguma campanha ou empreendimento que o fazia transferir sua corte por todo o lmpério. De forma que os contatos entre o imperador e o bispo foram' breves e esporádicos. Eusébio era respeitado por muitos dos seus colegas, e Cesaréia era uma cidade importante; por isso Constantino se empenhou em cultivar o apoio do prestigioso bispo desta cidade. Eusébio, da mesma forma, depois das experiências dos anos de perseguição, não podia fazer outra coisa que se alegrar com a nova situação, e agradecer ao imperador pela mudança que este causara.
Por outro lado, não devemos esquecer que foi depois da morte de Constantino, em 337, que Eusébio escreveu suas linhas mais elogiosas sobre o imperador falecido. Não se trata aqui, portanto, de um bajulador, mas de um homem agradecido. Esses fatos, entretanto, deixaram sua marca em toda a obra de Eusébio, particularmente em sua História eclesiástica.
O propósito de Eusébio, ao escrevê-la, fora simplesmente narrar os acontecimentos da Vida da igreja. Seu propósito era mais apologético. Ele queria mostrar que a fé cristã era a consumação de toda a história humana. Esta idéia tinha aparecido muitos anos antes nos escritores que no século segundo defenderam a fé contra os ataques; dos pagãos. Na opinião destes autores tanto a filosofia como as Escrituras hebraicas tinham sido providas por Deus como preparo para o evangelho. Surgiu também em pouco tempo a idéia de que o próprio imperador romano, com a paz relativa que ele tinha concretizado nas margens do Mediterrâneo, também tinha sido colocado por Deus para facilitar a disseminação da nova fé. Por outro lado desde tempos muito remotos, cristãos como Irineu tinham dito que toda a história da humanidade era um longo processo pelo qual Deus estava preparando ou educando a humanidade para que pudesse ter comunhão com ele. Eusébio agora dá corpo a este conjunto de idéias, tentando fundamentá-lo sobre os fatos; comprováveis da história da igreja e do - Império. A história que ele escreve, então, não é uma simples compilação de dados, com o interesse de um antiquário, mas é mais uma prova da verdade da fé cristã, que é a consumação de toda a história humana.
Para sustentar esta tese, a conversão de Constantino era um elemento fundamental. Na opinião de Eusébio as perseguições eram causadas principalmente pelo fato de as autoridades do Império não terem percebido que o cristianismo representava a coroação das melhores tradições romanas. A fé e o Império, assim como a fé e a filosofia, não eram incompatíveis. Pelo contrário, a fé era a coroa tanto da filosofia, como do Império. Por isso a importância que Eusébio dava à nova política religiosa de Constantino não se limitava simplesmente As vantagens de que a igreja estava desfrutando com essa política, mas ia muito além. A nova situação era prova contundente da verdade do evangelho, ponto culminante da história humana.
Naturalmente essa perspectiva teológica proibia qualquer atitude crítica frente ao que estava acontecendo. Quanto a Constantino, a quem Deus tinha utilizado para levar a cabo os seus planos, Eusébio parece ter percebido os seus principais defeitos, particularmente sua ira incontrolável e seu espírito sanguinário. Mas os propósitos apologéticos da sua obra não permitem que Eusébio mencione estas coisas, e ele simplesmente as omite.
O mais grave de tudo isto, entretanto, não está no que Eusébio disse ou deixou de dizer sobre Constantino. O mais grave está em que em toda a obra de Eusébio nós podemos ver como boa parte da teologia cristã, mesmo sem o perceber, foi se ajustando As novas condições, em muitos; casos abandonando ou transformando alguns dos seus temas tradicionais. Vejamos alguns exemplos:
No Novo Testamento, e na igreja dos primeiros séculos, aparece com freqüência o tema de que o evangelho é em primeiro lugar para os pobres, e que os ricos têm mais dificuldades para entendê-lo e seguí-lo. De fato, a questão de como uma pessoa rica pode ser salva preocupou os cristãos dos primeiros séculos. Agora, a partir de Constantino, a riqueza e a pompa começaram a ser considerados um sinal do favor divino. Como veremos no próximo capítulo, o movimento monástico foi em certo sentido um protesto contra esta interpretação acomodatícia. Eusébio, porém - e as muitas outras pessoas que, ele representa - não parecem ter percebido a mudança radical que estava ocorrendo quando a igreja perseguida passou a ser a igreja dos poderosos, nem dos perigos em que isto implicava,
Da mesma forma Eusébio descreve com grande contentamento e orgulho os luxuosos templos que estavam sendo construídos. Mas o resultado real dessas construções e da liturgia que evoluiu nelas foi o surgimento de uma aristocracia clerical, semelhante e paralela à aristocracia imperial, e freqüentemente tão distante do crente comum como os cidadãos comuns dos poderosos do Império. A igreja começou a imitar os costumes do Império não sé em sua liturgia, mas também em sua estruturação social.
Por último, o esquema que Eusébio concebeu em termos de história o obrigou a abandonar um dos temas fundamentais da pregação cristã primitiva: a vinda do Reino. Eusébio não o diz explicitamente, mas ao lermos as suas obras temos a impressão de que com Constantino e seus sucessores o plano de Deus se cumpriu. Fora isto, a única coisa por que ainda precisamos esperar é o momento de sermos transferidos em espírito para o reino celestial. A partir da época de Constantino, em parte por causa da obra de Eusébio e de outros com ele, começou a dominar a tendência de negligenciar ou esquecer a esperança da igreja primitiva, de que seu Senhor retornaria nas nuvens para estabelecer um Reino de paz e justiça. Em épocas posteriores a maioria dos grupos que voltaram a enfatizar esta esperança foram considerados hereges e revolucionários, e condenados como tais.
O fato de Eusébio nos ter dado ocasião para expor estas mudanças na vida e na doutrina cristã não deve ser interpretado como se ele fosse o único responsável por estas mudanças. Pelo contrário, a impressão que temos ao lermos os documentos da época de Eusébio é que ele representa mais que qualquer contemporâneo seu o que o cristão comum pensava, para quem a ascensão de Constantino e a paz que ele trouxe representava o cumprimento dos planos de Deus. Estes outros cristãos talvez não souberam expressar seus sentimentos com a elegância e a erudição de Eusébio. Mas foram eles quem pouco a pouco foram dando forma A igreja nos anos posteriores a Constantino. Eusébio, então, não é o criador do que aqui temos chamado de "teologia oficial", mas somente o porta-voz dos muitos cristãos que como ele se sentiam surpresos e agradecidos por terem saído das tribulações da perseguição.
Entretanto, como veremos nos capítulos seguintes, nem todos os cristãos acolhiam as novas circunstâncias com o mesmo entusiasmo.
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Este artigo é parte integrante do portal http://www.monergismo.com/.
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