Há mais de 150 anos, Lewis Carroll publicou os livros Alice no país das maravilhas e Alice no país dos espelhos.
Por Suely Gevertz
Atualmente, encontra-se em cartaz um filme dirigido por Tim Burton e duas edições sobre as obras de Lewis Carroll estão nas livrarias. Uma da Editora Jorge Zahar, que contém as duas histórias de Alice e outra da Editora Cosac Naify, com Alice no país das maravilhas. O que será que mantém esta história viva até os dias de hoje?
Nesta coluna, escreverei somente sobre Alice no país das maravilhas, na edição da Editora Cosac Naify. O livro conta a história das aventuras de Alice ao cair numa toca de coelho, levando-a a um lugar povoado por criaturas fantásticas que misturam características humanas e fantásticas que lhe apresentam enigmas. Possui as belíssimas ilustrações de Luiz Zerbini e a tradução de Nicolau Sevcenko, historiador e professor da Universidade de Harvard e da Universidade de São Paulo (USP), para quem Alice no país das maravilhas é: “A melhor lição de ética, de irreverência e de inconformismo, tanto para crianças quanto para adultos.” O tradutor assina também um posfácio exclusivo, contextualizando o período vitoriano em que o livro foi escrito e a crítica à sociedade implícita na narrativa de Carroll. O artista plástico paulista Luiz Zerbini criou cenários feitos de cartas de baralho das quais saltam os personagens, por meio de recortes. Suas ilustrações são repletas de lembranças lúdicas e, ao mesmo tempo, desconcertantes, colaborando com o clima de energia alucinante e hipnótica do livro.
Experiência onírica
O livro apresenta um mundo atravessado de irracionalidade, de situações absurdas e de diálogos desconcertantes. Alice é uma estrangeira no país das maravilhas. Quando Alice se defronta com uma situação de prepotência ou desrespeito, imediatamente o enfrenta de igual para igual, como uma criança, sem medo. Diferentemente de outros momentos em que se vê sozinha, em situações que não entende o sentido. A maioria dos personagens do livro apresenta à Alice situações inéditas para ela, que tenta recorrer à imagem de seu bicho de estimação, um gatinho que, segundo ela, se estivesse presente no momento, saberia como lidar com o momento que está vivendo. São personagens assustadores, inéditos, com características humanas, que sofrem, tem alegrias e receios. A rainha de Copas tem um peculiar senso de justiça, dando punição antes mesmo de um julgamento, por exemplo, o que pode representar pessoas que participaram de toda a história da humanidade até os dias de hoje: pessoas que julgam antes de saber.
O livro inicia-se numa situação que, creio, todas as pessoas vivem: num dia quente, sem nada para fazer, entediada com aquilo que está fazendo, Alice parece entrar em um estado de devaneio. Segue um coelho que tira um relógio do bolso de seu colete e cai num buraco. É frequente a experiência onírica de cair num buraco. E, do meu ponto de vista, o devaneio dá um possível sentido ao livro e de sua permanência ao longo do tempo. Alice no país das maravilhas descreve ao longo de sua história, o que Freud formulou como a formação dos sonhos. Todas as formulações feitas por Freud sobre a formação de sonhos estão presentes no livro: deslocamento, condensação, transformação de afetos em seus contrários (amor aparecendo como ódio, por exemplo), figurabilidade.
Formação de sonhos
Como uma criança, Alice mostrase assombrada com tudo o que vê. Mas, não é o mesmo que as pessoas demonstram frente a muitos de seus sonhos, vividos em estado de sono ou em vigília (devaneios)? Ou quando se defrontam com sentimentos, reações e ações inusitadas? Não se reconhece nesses momentos. Em sonhos, todos os objetos, animais e pessoas podem aparecer como inéditas, como um coelho usando relógio. Crescer e diminuir podem ser possíveis nos sonhos. Uma rainha irracional, com julgamentos não baseados na realidade que vive. Enfim, todos os personagens de Carroll apresentam-se regidos pelos métodos conhecidos pela Psicanálise ao estudar o mecanismo realizado pela mente na formação de sonhos. Ao lembrar-se de sonhos, muitas pessoas vivem uma sensação de estranhamento. Isso ocorre também em situações experienciadas durante um processo psicanalítico ao se defrontarem com aspectos desconhecidos de sua vida mental. E essas experiências também se apresentam sem sentido, muitas vezes. A Psicanálise também diz que os mecanismos de formação de sonhos são os mesmo que a mente utiliza para dar conta das emoções que se vive.
Do meu ponto de vista, um dos motivos desta obra ter persistido no tempo é por ela trazer a possibilidade de identificação daquilo que todas as pessoas têm: a mente e seu funcionamento. E a mente tem como função dar significado as experiências vividas, dando um sentido a elas e ao viver. Como Alice no país das maravilhas.
Suely Gevertz é psicóloga Clínica e psicanalista. Professora no Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo, e do curso Psicanálise para formação de Psicoterapeutas, do Setor de Psicoterapia do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP / Escola Paulista de Medicina. E-mail: sgevertz@gmail.com
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