Há mais de um século, o dia 13 de maio marca a data da assinatura da lei que emancipou os escravos. A concessão da liberdade, porém, foi acompanhada de medidas que negaram a cidadania plena aos negros
por Flávio Gomes e Carlos Eduardo Moreira de Araújo
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No início de 1929, o periódico carioca O Jornal apresentava em suas páginas uma “preciosidade suburbana” de 114 anos: “Um preto velho, curvado sobre um cacete nodoso, typo impressionante, que raramente se vê em nossa capital”. O homem havia procurado aquela redação no intuito de pedir ajuda para comprar uma passagem para a Barra do Piraí, onde iria visitar seu neto, mas, diante do olhar de espanto dos jornalistas, decidiu sentar para conversar e contar suas histórias do tempo em que era escravo: “Eu nasci em São João del Rey, quando ainda estava no Brasil o sr. dom João, pai do primeiro imperador. Era molecote e pertencia ao sr. capitão Manoel Lopes de Siqueira”. Teria sido vendido para o coronel Ignácio Pereira Nunes, dono da fazenda da Cachoeira, em Paraíba do Sul. Ali labutava quando estourou a Revolução Liberal de 1842 (ver glossário). Trabalhava tanto na lavoura como nas tropas que cruzavam o vale do Paraíba despejando café no porto do Rio de Janeiro.
O ex-escravo chamava-se Hipólito Xavier Ribeiro e era morador do morro da Cachoeirinha, na serra dos Pretos Forros (localizada entre os atuais bairros de Lins de Vasconcelos e Cabuçu, na zona norte do Rio de Janeiro). Ao longo de sua vida testemunhou importantes acontecimentos da história do Brasil, entre os quais a Guerra do Paraguai, da qual participou: “Quando o imperador mandou chamar os moços brancos para servir na tropa de linha, nunca vi tanto rancho em biboca da serra, tanto rapaz fino barbudo que nem bicho escondido no mato... O recrutamento esquentou a cada fazendeiro. Para segurar o filho, agarrando a saia da mamãe, entregava os escravos. Entregava chorando porque um negro naquele tempo dava dinheiro. Eu fui num corpo de voluntários quase no fim da guerra, mas ainda entrei em combate em Mato Grosso”.
Terminado o conflito, Hipólito presenciaria outro fato marcante de nossa história: a abolição da escravidão, com a assinatura da Lei Áurea no dia 13 de maio de 1888. Ele ainda se lembrava bem dos festejos – “um batuque barulhento, sapateado de pé no chão, um cateretê daqueles, correu de dia e de noite” – mas a recapitulação do passado foi interrompida pela dura realidade do presente. Quando já havia reunido uma platéia na redação que ouvia atentamente as suas histórias, o antigo escravo decretou:
“Se eu fosse contar tudo o que sei... não acabava hoje”. Queria mesmo era ajuda para comprar a passagem, pois “o tempo de hoje está pior do que o tempo do imposto do vintém (ver glossário)” e “cadê dinheiro?”, e “a pé não chego lá, de trem não posso ir”. E foi-se embora. Um dos jornalistas que ouviu o relato descreveu o velho negro em sua crônica: “Não obstante a sua idade avançada, apresenta aspecto sadio. É um preto alto, espadaúdo, ainda com esforço consegue se empertigar com entusiasmo. Fala com pausa, como a inquirir o pensamento”.
Flávio Gomes e Carlos Eduardo Moreira de Araújo são historiadores. FLÁVIO GOMES é professor do Departamento de História da UFRJ. Organizou o volume Quase-cidadão – História e antropologia do pós-emancipação no Brasil (Fundação Getúlio Vargas, 2007) e escreveu A hidra e os pântanos – Mocambos e quilombos no Brasil escravista/i (Editora da Umesp, 2005), entre outros livros. CARLOS EDUARDO MOREIRA DE ARAÚJO é doutorando em história social pela Unicamp e um dos autores de Cidades negras – Africanos e crioulos no Brasil escravista (Alameda, 2006).
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