segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O Pequeno Príncipe XXVI

Havia, ao lado do poço, a ruína de um velho muro de pedra. Quando voltei do trabalho, no dia seguinte, vi, de longe, o príncipezinho sentado no alto, com as pernas balançando. E eu o escutei dizer :

- Tu não te lembras então? Não foi bem aqui o lugar!

Uma outra voz devia responder-lhe, porque replicou em seguida:

- Não; não estou enganado. O dia é este, mas não o lugar...

Prossegui o caminho para o muro. Continuava a não ver ninguém. No entanto o príncipezinho replicou novamente:

- ... Está bem. Tu verás onde começa, na areia, o sinal dos meus passos. Basta esperar-me. Estarei ali esta noite.

Eu me achava a vinte metros do muro e continuava a não ver nada. O príncipezinho disse ainda, após um silêncio:

- O teu veneno é do bom? Estás certa de que não vou sofrer muito tempo?

Parei, com o coração apertado, sem compreender ainda.

- Agora, vai-te embora, disse ele... Eu quero descer !



Então baixei os olhos para o pé do muro, e dei um salto! Lá estava, erguida para o príncipezinho, uma dessas serpentes amarelas que nos liquidam num minuto. Enquanto procurava o revólver no bolso, dei uma rápida corrida.

Mas, percebendo o barulho, a serpente se foi encolhendo lentamente, como um repuxo que morre. E, sem se apressar demais, enfiou-se entre as pedras, num leve tinir de metal.

Cheguei ao muro a tempo de receber nos braços o meu caro príncipezinho, pálido como a neve.

- Que história é essa? Tu conversas agora com as serpentes?

Desatei o nó do seu eterno lenço dourado. Umedeci-lhe as têmporas. Dei-lhe água. E agora, não usava perguntar-lhe coisa alguma. Olhou-me gravemente e passou-me os bracinhos no pescoço. Sentia-lhe o coração bater de encontro ao meu, como o de um pássaro que morre atingido pela carabina.

Ele me disse:

- Estou contente de teres descoberto o defeito do maquinismo. Vais poder voltar para casa...

- Como soubeste disso?

Eu vinha justamente anunciar-lhe que, contra toda expectativa, havia realizado o conserto!

Nada respondeu à minha pergunta, mas acrescentou:

- Eu também volto hoje para casa...

Depois, com melancolia, ele disse:

- É bem mais longe... Bem mais difícil...

Eu percebia claramente que algo de extraordinário se passava. Apertava-o nos braços como se fosse uma criancinha; mas tinha a impressão de que ele ia deslizando verticalmente no abismo, sem que eu nada pudesse fazer para detê-lo...

Seu olhar estava sério, perdido ao longe:

- Tenho o teu carneiro. E a caixa para o carneiro. E a mordaça...

Ele sorriu com tristeza.

Esperei muito tempo. Pareceu-me que ele ia se aquecendo de novo, pouco a pouco:

- Meu querido, tu tivesse medo...

É claro que tivera. Mas ele sorriu docemente.

- Terei mais medo ainda esta noite...

O sentimento do irreparável gelou-me de novo. E eu compreendi que não podia suportar a idéia de nunca mais escutar esse riso. Ele era para mim como uma fonte no deserto.

- Meu bem, eu quero ainda escutar o teu riso...

- Mas ele me disse:

- Faz um ano esta noite. Minha estrela se achará justamente em cima do lugar onde caí o ano passado...

- Meu bem, não será um sonho mau essa história de serpente, de encontro marcado, de estrela?

Mas não respondeu a minha pergunta. E disse:

- O que é importante, a gente não vê...

- A gente não vê...

- Será como a flor. Se tu amas uma flor que se acha numa estrela, é doce, de noite, olhar o céu. Todas as estrelas estão floridas.

- Todas as estrelas estão floridas.

- Será como a água. Aquela que me deste parecia música, por causa da roldana e da corda... Lembras-te como era boa?

- Lembro-me...

- Tu olharás, de noite, as estrelas. Onde eu moro é muito pequeno, para que eu possa te mostrar onde se encontra a minha. É melhor assim. Minha estrela será então qualquer das estrelas. Gostarás de olhar todas elas... Serão, todas, tuas amigas. E depois, eu vou fazer-te um presente...

Ele riu outra vez.

- Ah! Meu pedacinho de gente, meu amor, como eu gosto de ouvir esse riso!

- Pois é ele o meu presente... Será como a água...

- Que queres dizer?

- As pessoas têm estrelas que não são as mesmas. Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, os sábios, são problemas. Para o meu negociante, era ouro. Mas todas essas estrelas se calam. Tu, porém terás estrelas como ninguém...

- Que queres dizer?

- Quando olhares o céu de noite, porque habitarei uma delas, porque numa delas estarei rindo, então será como se todas as estrelas te rissem! E tu terás estrelas que sabem sorrir!

E ele riu mais uma vez.

- E quando te houveres consolado (a gente sempre se consola), tu te sentirás contente por me teres conhecido. Tu serás sempre meu amigo. Terás vontade de rir comigo. E abrirás às vezes a janela à toa, por gosto... E teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu. Tu explicarás então: "Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!" E eles te julgarão maluco. Será uma peça que te prego...

- E riu de novo.

- Será como se eu te houvesse dado, em vez de estrelas, montões de guizos que riem...































E riu de novo, mais uma vez. Depois, ficou sério:

- Esta noite... Tu sabes... Não venhas.

- Eu não te deixarei.

- Eu parecerei sofrer... Eu parecerei morrer. É assim. Não venhas ver. Não vale a pena...

- Eu não te deixarei.

Mas ele estava ocupado.

- Eu digo isto... Também por causa da serpente. É preciso que não te morda. As serpentes são más. Podem morder por gosto...

- Eu não te deixarei.

Mas uma coisa o tranquilizou:

- Elas não têm veneno, é verdade, para uma segunda mordida...

Essa noite, não o vi pôr-se a caminho. Evadiu-se sem rumor. Quando consegui apanhá-lo, caminhava decidido, a passo rápido. Disse-me apenas:

- Ah! Estás aqui...

E ele me tomou pela mão. Mas afligiu-se ainda:

- Fizeste mal. Tu sofrerás. Eu parecerei morto e não será verdade...

Eu me calava.

- Mas será uma velha casca abandonada. Uma casca de árvore não é triste...

- Tu compreendes. É longe demais. Eu não posso carregar esse corpo. É muito pesado.































Eu me calava.

- Será tão divertido ! Tu terás quinhentos milhões de guizos, eu terei quinhentos milhões de fontes...

E ele se calou também, porque estava chorando...

- É aqui. Deixa-me dar um passo sozinho.

E sentou-se, porque tinha medo.

Disse ainda:

- Tu sabes... Minha flor... Eu sou responsável por ela! Ela é tão frágil! Tão ingênua ! Tem quatro espinhos de nada para defendê-la do mundo...

Eu sentei-me também, pois não podia mais ficar de pé.

Ele disse:

- Pronto... Acabou-se...

Hesitou ainda um pouco, depois se ergueu. Deu um passo. Eu... Eu não podia mover-me.

Houve apenas um clarão amarelo perto da sua perna. Permaneceu, por um instante, imóvel. Não gritou. Tombou devagarzinho como uma árvore tomba. Nem fez sequer barulho, por causa da areia.




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