sábado, 25 de dezembro de 2010

O Senhor das Moscas

Lord of the flies



















Realizador: Harry Hook

Actores: Chris Furrh; Paul Getty

Música: Philippe Sarde

Duração: 91 min.

Ano: 1990

Um filme inspirado no livro ” O senhor das moscas”, com o qual o seu autor, William Golding, ganhou o prémio Nobel da literatura.

Um grupo de estudantes entre os 9 e os 15 anos de idade sofre um desastre de avião e cai numa ilha deserta. Pertenciam a uma academia militar, pelo que o comandante do grupo assume a liderança. No início a alegria é a nota dominante. Não há aulas, não há adultos… só há férias! Como se trata de uma ilha tropical, sentem-se no paraíso. No entanto, é preciso lutar pela sobrevivência para conseguir alimentos, para se protegerem das condições climatéricas e para avisar os possíveis socorristas de que estão vivos… Dividem-se tarefas, estabelecem-se objectivos, mas nem todos os elementos do grupo possuem a mesma motivação. Alguns não estão dispostos a aceitar as regras do jogo, mesmo que o que esteja em causa seja a sobrevivência… Um dos rapazes propõe que se dediquem apenas à caça e às brincadeiras, apresentando aos seus companheiros soluções facéis e de satisfação imediata. Recusa participar nos trabalhos rotineiros que caberiam a todos os estudantes. Desfaz-se a união entre os colegas e alguns seguem o rebelde. Com o desenrolar da história, o comandante do grupo cada vez se vai sentindo mais isolado, mas não cede nas suas convicções e no que ele considera mais adequado para o bem de todos. Mantém a sua estratégia, a única correcta a longo prazo. Mas a sua firmeza é insuportável para os insubmissos que, numa explosão de ódio, tentam matá-lo, depois de já terem morto um dos poucos colegas que o apoiava. É um homem só, o único que não se juntou aos do “outro grupo”. No momento em que está quase a ser apanhado, chegam uns helicópteros salvadores, colocando um ponto final à história, que fica em aberto… a conclusão tem de ser tirada por todos os espectadores do filme ou leitores do livro.

Estamos perante um filme cru e forte sobre a natureza humana, marcado por uma extraordinária banda sonora, que cria e dissolve estados de alma e envolve emocionalmente toda a realidade que nos é dada observar.

Tópicos de análise:

1. A capacidade de liderança.

2. Como motivar as pessoas.

3. As relações humanas dentro de um grupo.

4. Um conjunto mínimo de regras torna mais eficaz o trabalho de todos.

5. A cobardia em aceitar falsas propostas, só para não se ficar isolado.

6. A importância de manter a estratégia correcta, apesar de impopular.

7. Ceder no essencial uma vez, é ceder para sempre.

Encontra aqui uma curta apresentação de algumas dezenas de filmes, contendo os dados principais de cada um deles, um resumo e alguns tópicos de análise. Não se trata de filmes aconselhados por nós, mas apenas de algumas ideias que podem ajudar a escolher um filme ou a tirar partido dele do ponto de vista educativo.

Colaboração de Paulo Martins, Mestre em História e doutorando em Cinema.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

LUÍS XVI


















Por Daniel Fresnot

Luís XVI foi um chaveiro amador, tímido, míope, por demais influenciável e irresoluto, Eu poderia começar com esta frase o retrato do rei, mas estaria enganando o leitor, mesmo sendo verdade que o seu passatempo favorito era desmontar fechaduras, Ao privilegiar esta descrição estaria induzindo ao erro e a caricatura. Luís de XVI foi na verdade um rei bem-intencionado e mal-aconselhado.
Casou aos 16 anos com Maria Antonieta e recebeu a coroa com 20 anos em 1774. Imediatamente atende aos anseios dos reformadores e quase desmente a frase atribuída a seu recém-falecido avô Luís XV: Depois de mim, o dilúvio! "O jovem rei chama um ministro que quer abolir privilégios e servidões: Turgot, homem íntegro e competente e, fato pouco conhecido, um precursor de Ricardo e da ciência econômica liberal moderna, Mas Turgot está mexendo com algumas mordomias da corte, os nobres conservadores e o partido clerical.
Intrigam para que ele perca a confiança do rei. E conseguem; Luís dispensa Turgot com menos de dois anos no ministério. A corte não sabe que ao recusar o anel vai perder o dedo ou a cabeça.
O rei da França nomeia outro ministro de progresso, o banqueiro protestante Necker, homem muito popular junto ao que chamaríamos hoje de sociedade civil. Necker também quer reformas, embora mais tímidas que as de Turgot e esbarra na facção reacionária da corte de Versalhes. Ao demitir Necker (1781), o rei perde o apoio daqueles que mantinham esperanças em mudanças vindas de cima.
Os ministros seguintes, Calonne e por fim Brienne, não têm a estatura dos primeiros nem incomodam a corte com seus gastos e regalias faraônicos. No entanto, Luís XVI tomou antes de 1789 medidas humanistas como a abolição da tortura e plenos direitos civis aos protestantes, Também realçou o prestígio externo da França com a ajuda militar aos revolucionários norte-americanos. A Inglaterra foi derrotada na terra e no mar e alguns nobres chegaram a brincar de dar nomes franceses às ruas de Londres, que seria facilmente tomada, Mas no governo de Brienne aparece a dura realidade: não há mais dinheiro nos cofres reais, somente dívidas.
Já disseram que a Revolução Francesa foi a vitória da nobreza de toga sobre a nobreza de espada e isto é fato pelo menos no início. Os advogados, magistrados, membros dos parlamentos municipais estão em conflito aberto com o poder do monarca.
Para obter mais impostos e desarmar o descontentamento, Luís XVI chama de volta Necker (1788) e promete convocar os famosos Estados Gerais, uma medida que a monarquia francesa não tomava há dois séculos. Os Estados Gerais são a reunião das três ordens ou Estados (hoje diríamos classes) da sociedade desde a Idade Média: o nobre que luta, o clero que reza e o camponês (Terceiro Estado) que trabalha. Luís XVI reconquista a popularidade decretando que o Terceiro Estado terá tantos representantes (400) quanto o clero e a nobreza juntos, Mas não sabe aproveitar a situação para orientar as eleições e nem propor aos deputados algum programa de reformas.
Em 1789, com a reunião dos Estados Gerais começa a Revolução Francesa e Luís XVI fica logo ultrapassado pela importância dos eventos. Quer esvaziar os Estados Gerais pela falta de assunto e medidas a tomar, mas é tarde demais, os deputados já tomaram consciência de sua força e se autoproclamam Assembléia Nacional e logo depois Constituinte. Necker é demitido numa inútil provocação aos parisienses que tomam a Bastilha e descobrem 50 mil fuzis no prédio dos Inválidos, Apesar das jornadas "revolucionárias, o rei ainda é popular em Paris, mas ele vai de maneira quase constante prejudicar ou embaraçar seus partidários e favorecer seus inimigos mais radicais. Um punhado de nobres ligados à rainha vai levá-lo a querer adotar a política do pior.
O rei recusa assinar a Declaração dos Direitos do Homem e demais medidas da Assembléia. Uma multidão de parisienses revoltados o traz semiprisioneiro de Versalhes a Paris em outubro de 1789. Entretanto, Luís ainda tem muitos trunfos: a grande maioria dos revolucionários quer manter a monarquia como poder moderador. Mirabeau e La Fayette são seus aliados. No primeiro aniversário do dia 14 de julho, o rei jura fidelidade à nova Constituição e é aclamado pelos parisienses e pelos guardas nacionais enviados para a cerimônia de todos os cantos da França. Luís cometeu o erro de não se conformar com a monarquia constitucional e a sua consciência parece ter sido perturbada pela questão do juramento civil que a Revolução exige dos padres. A sua esperança agora é a repressão de seu próprio povo pelos reis estrangeiros. Ele vai tentar fugir até os exércitos monarquistas franceses e austríacos para voltar com eles ao poder: é a desastrada fuga de Varennes (junho de 1791), quando um taberneiro e um empregado dos correios reconhecem e prendem o rei da França. Luís XVI perdeu definitivamente sua popularidade. Mas ainda é rei. Muitos membros da Assembléia querem manter o monarca como símbolo e contra as tendências igualitárias mais radicais. E mais uma vez o rei vai conspirar contra seus próprios interesses.
Ele propõe à Assembléia a declaraçã de guerra á Áustria (abril de 1792) com a esperança de ver os revolucionários derrotados. A Prússia se junta à Àustria e a guerra começa como o previsto, com derrotas para os franceses. Mas a história muda em Valmy, a grande vitória da liberdade sobre a qual profetiza Goethe: "Hoje começa uma nova época para o mundo".E o rei dos franceses já é considerado um traidor, o cúmplice dos inimigos da Pátria, destituído e prisioneiro em Paris.
A Assembléia Legislativa dá lugar à Convenção mais radical que julga o cidadão Luís Capeto e o condena à morte por uma estreita maioria. Luís impressionou pela dignidade e coragem, mas não convenceu ao negar as acusações sistematicamente. Até o último camponês dos confins da Rússia ficará sabendo: os franceses guilhotinaram o seu rei. A monarquia baseada na vontade divina tem os dias contados, vai prevalecer a vontade popular.


DANIEL FRESNOT é doutor em letras pela Sobornne. No Brasil, onde reside, iniciou uma dupla carreira de industrial e escritor. É autor do romance "A Terceira Expedição"

Este texto pertence à edição comemorativa dos 200 anos da Revolução Francesa, publicado pela Revista Isto É, em 1989

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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

As representações de Cristo





















Andrea Mantegna- The Lamentation over the Dead Christ -1490



A representação de Cristo foi transformada ao longo da História.



A representação de Cristo é um tema polêmico que, desde o século XVIII, desperta a curiosidade de vários pesquisadores e religiosos. Na verdade, essa polêmica remonta a sociedade onde o próprio Cristo nasceu. Os judeus, preservando os ideais de sua prática religiosa e condenando a idolatria dos estrangeiros, proibia a produção de retratos. Dessa forma, a missão de revelar as feições do líder religioso ficou a cargo de diversos pintores e escultores que se lançaram a essa mesma missão.

Um dos mais antigos relatos sobre a representação de Jesus foi constatado em uma narrativa mítica do século VI, referente ao Sudário de Verônica. Segundo o mito, Abgar, rei de Edessa (atual Síria), enviou um artista para que o mesmo pudesse produzir um retrato de Cristo. Ao encontrar o líder religioso, o artista enviado não conseguiu cumprir sua missão, pois o rosto de Cristo emanava uma intensa luz. Com isso, Jesus teria usado uma toalha que ficou marcada pelos traços de seu rosto.

No entanto, a primeira representação historicamente comprovada foi encontrada em uma parede do Pedagogium, a antiga escola da guarda imperial. Neste desenho, criado por volta do século III, há a representação de um homem com cabeça de asno crucificado, enquanto um grego lhe presta adoração. A imagem depreciativa, provavelmente seria de autoria de algum soldado romano não muito convencido do caráter divino do Messias.

Sendo a idolatria a imagens igualmente refutada pelos cristãos primitivos, muitos subvertiam a ordem com a criação de diversos símbolos que remetiam a Cristo Jesus. Entre diversos símbolos podemos destacar a cruz, as iniciais de seu nome e a âncora. Havia também um acróstico produzido a partir da fase “Iesus KHristos Theou Uios Soter” (Jesus Cristo Filho de Salvador), onde suas iniciais formavam a palavra peixe, animal até hoje associado ao Cristianismo.

No entanto, a refutação a uma representação humana de Cristo logo passou a ser praticada pelos cristãos, a partir do século III. Utilizadas como grande meio de divulgação e conversão religiosa, as imagens de Cristo passaram a contar com uma diversa gama de situações encenadas. Uma das representações mais comuns coloca Cristo em meio aos animais, fazendo alusão à idéia do poder que o Messias teria de liderar os cristãos e converter os homens.

Em outras imagens mais poderosas, percebemos uma tentativa de valorização da dimensão sobrenatural de Cristo. Nesse tipo de representação temos a ação do Messias durante os julgamentos do Juízo Final, onde estaria separando os bons e os maus. Em outras representações com temática semelhante, Cristo aparece realizando milagres por meio de uma varinha que leva nas mãos. Outro tipo ainda alude à pregação religiosa mostrando um Cristo jovem palestrando aos seus seguidores.

Todas essas representações de um Cristo imperioso e ativo perdem espaço ao longo da Idade Média. A partir da Baixa Idade Média temos várias representações em que Jesus sofre com os suplícios de seu processo de crucificação. De fato, a imagem predominante de Jesus Cristo tem um rosto de traços suaves, pele clara, olhos claros, barba fina e cabelos ondulados. Essa representação surgiu no tempo das Cruzadas, época em que os não-brancos representavam os pagãos.

Em um recente estudo desenvolvido pela Universidade de Manchester, tendo como base o crânio de um judeu do século I, houve a tentativa de se formular um desenho aproximado do Cristo naquela época. Por meio de avançados recursos de computação gráfica chegaram à conclusão de que Jesus, provavelmente, teria um rosto arredondado, cabelos negros, pele amorenada e uma braba grossa.

Fonte: História do mundo

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Foucault: o historiador dos pensamentos

Em suas arqueologias, o intelectual francês questionou conceitos antes pouco explorados como loucura, sexualidade e punição, e mostrou que, muitas vezes, o certo é apenas uma convenção disciplinar

















MICHEL FOUCAULT (1926 – 1984) Ocupou a cadeira do Collège de France de 1970 até sua morte. Sua obra é associada com diversos sistemas do século XX, como estruturalismo, pós estruturalismo e pós-modernismo. Ao revolucionar e questionar as noções de sujeito, sexualidade e poder, o francês se tornou um dos pensadores mais conhecidos do séc. XX

Todos sabem que, na França, há poucos lógicos, mas que houve um número razoável de historiadores das ciências. Sabe-se também que eles ocuparam na instituição filosófica – ensino ou pesquisa – um lugar considerável.” Com esta bela fórmula Foucault inicia o último texto que publicou em vida, nomeado de A Vida: a experiência e a ciência (1984). Ela apresenta e contextualiza aquilo que para ele representava as duas maiores tradições do pensamento filosófico francês durante a primeira metade do século XX. A filosofia do sujeito, personificada pelo existencialismo francês e a filosofia do saber, representada por uma epistemologia histórica. Mas talvez a maior beleza contida na fórmula acima é que ela nos mostra como Foucault se via no cenário pintado por ele mesmo. Foucault era natural da cidade de Poitiers, Sudoeste da França, famosa porque em sua proximidade ocorreram três das mais importantes batalhas da história da França: sendo a de 19 de setembro de 1356 , durante a Guerra dos Cem Anos, a mais famosa. Ele se refere sobre sua cidade natal num cartão postal de 1981 do seguinte modo: “Assim é a cidade em que nasci: santos decapitados, o livro na mão, cuidam para que a justiça seja justa, os castelos sejam fortes... Eis o berço de minha sabedoria”. Batizado Paul-Michel, nasceu em 15 de outubro de 1926. Era o segundo filho de Paul-André Foucault e de Anne-Marie Malapert. Sua irmã, mais velha, chamava-se Francine, e o caçula da família, Denys.

Didier Éribon, autor da biografia oficial e, provavelmente ainda a mais confiável sobre Michel Foucault, é enfático sobre dois traços bastante marcantes da família do francês: o nome Paul, que atravessa pelo menos três gerações seguidas; e a profissão, uma família de médicos, por parte de pai e mãe, que deveria também ser trilhada por Paul-Michel. Duas tradições, aliás, que Foucault se encarregara de quebrar. Nos documentos oficiais e nos registros escolares, ele se chama Paul. Para sua mãe e familiares, era Paul- Michel. Mas para ele mesmo e para todos nós que nos encantamos ou nos inquietamos com seu pensamento, é somente Michel Foucault.


Em História da loucura na idade clássica (1961), Foucault argumenta que, durante a idade média, os loucos haviam ocupado o lugar de excluídos da sociedade, antes reservado aos leprosos. Para ele, a clínica psiquiátrica moderna ainda mantinha uma padrão de brutalidade ao obrigar os insanos a internalizar os mecanismos de punição

UM HISTORIADOR DAS RACIONALIDADES

Mas quem foi Michel Foucault? Um filósofo, um historiador? Independente e mesmo antes de todas e quaisquer categorias a que poderíamos recorrer para “classificá-lo”, ele foi um pensador. Autor de uma vasta obra, composta de praticamente uma dezena de livros, inúmeros artigos, conferências, palestras, prefácios e posfácios, sem falar nas entrevistas e cursos; dotado de uma formidável curiosidade intelectual, seus textos versam sobre uma gama bastante variada e ampla de assuntos: loucura, medicina clínica, a formação das ciências humanas, as práticas punitivas e de vigilância, sexualidade, práticas morais e subjetividade, e tantos outros temas “menores” que nos lançam à dificuldade radicalizada ao tentarmos definir sob quais registros, em que disciplina classificar seu pensamento. A variedade de temas em Foucault é tão grande que a edição brasileira de seus Ditos e Escritos, organizada tematicamente (e não cronologicamente como a edição francesa), é apresentada em cinco grandes conjuntos de temas: problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise (vol. I); arqueologia das ciências e histórica dos sistemas de pensamento (vol. II); estética: literatura e pintura, música e cinema (vol. III); estratégia, poder-saber (vol. IV); e ética, sexualidade, política (vol. V).Contudo, a filosofia e a história são essenciais no pensamento de Michel Foucault; um filósofo que adotou a história como um estilo de escrita e de reflexão; ou ainda um historiador peculiar, ao levantar e trazer ao terreno da historiografia questões caras à filosofia. Enfim, como ele gostava de definir, seus trabalhos são “fragmentos de filosofia no canteiro da história”.

Na fórmula do início desse texto, Foucault deixa claro suas vinculações teóricas com a tradição da epistemologia historiográfica, que tem nas figuras de Gaston Bachelard (1884-1962), Alexandre Koyré (1882/1892-1964), Georges Canguilhem (1904- 1995) e Jean Cavaillès (1903-1944) seus grandes representantes. A tese principal desses teóricos, chamada de racionalismo regional, é de que a razão não existe, o que existe são racionalidades. Quer dizer, cada ciência, cada teoria científica é constituída de seu próprio aparato racional, não necessariamente dependente de algo externo (uma outra ciência ou uma outra teoria, por exemplo); embora possa herdar desse “algo” externo elementos fundamentais para a sua constituição teórica. Assim, investigar a racionalidade de uma ciência ou de uma teoria científica consiste num estudo dessa ciência ou dessa teoria em seu próprio exercício efetivo na história. Como bem observa Georges Canguilhem,

"O objeto do discurso histórico é, com efeito, a historicidade do discurso científico, enquanto essa historicidade representa a efetuação de um projeto interiormente submetido a normas, mas atravessada por acidentes, atrasada ou desviada por obstáculos, interrompida por crises, isto é, por momentos de julgamento e de verdade. [...] Portanto, a história das ciências [...] não se relaciona somente com um grupo de ciências sem coesão intrínseca, mas também com a não-ciência, com a ideologia, com a prática política e social.”

O JOVEM EM BUSCA DA LOUCURA

Entre os anos de 1955 e 1958, o jovem Paul-Michel reside em Uppsala, famosa por ser uma cidade eminentemente universitária, situada a 70 km ao norte de Estocolmo, na Suécia. A convite de Georges Dumézil – eminente mitólogo e historiador das religiões indo-européias – a quem Foucault sempre reconheceu dever intel ectualmente, trabalha aí como diretor da Maison de France e como leitor de francês. Logo após se instalar em Uppsala, descobre a Carolina Rediviva – a imponente biblioteca daquela universidade. A partir dos arquivos sobre a história da medicina, do século XVI ao começo do XX que Foucault se debruça a fim de coletar a base material para o que viria a ser sua tese de doutorado; mais conhecida por seus leitores como História da Loucura, escrita “ao longo da noite sueca”, como dizia em seu prefácio para a primeira edição, escrito em fevereiro de 1960, em Hamburgo.

A novidade de Foucault consiste na recusa
metódica de qualquer linearidade temporal da história

Desejoso de defender seu livro sobre a loucura como tese de doutorado, Foucault volta à Paris em busca de um relator. Sua primeira opção é Jean Hypollite, seu ex-professor na École Normale Supérieure. Mas este recomenda alguém mais afeito às questões e ao tema “médico-psiquiátrico” do livro: o epistemólogo Georges Canguilhem. Foucault, apesar de um tanto receoso quanto à indicação – pois não tivera até então muito sucesso nas ocasiões em que se deparou com este homem de temperamento forte e explosivo – vai ao seu encontro. Explica-lhe o que pretendeu fazer. Canguilhem apenas escuta e bruscamente confirma os temores do pupilo respondendo (segundo o biógrafo de Foucault, Daniel Defert): “Se isso fosse verdade, a gente saberia”. Mesmo assim, lê o manuscrito de quase mil páginas e sem hesitar aceita ser o relator da tese de Foucault. Trinta anos após esse livro, Canguilhem afirmaria “... se há em meu trabalho universitário um momento com que me sinta feliz, ainda hoje, e de que possa me envaidecer comigo mesmo foi o de ter sido relator da tese de doutorado de Michel Foucault. [...] para mim, 1961 continua e continuará sendo o ano em que se descobriu um verdadeiro grande filósofo.”

E do que trata História da Loucura? Basicamente, pode-se dizer que sua meta consistiu em evidenciar as condições históricas, sociais, culturais, institucionais, morais, religiosas, jurídicas e científicas que possibilitaram a organização, o aparecimento e formação de toda uma gama de discursos, variados e distintos entre si, mas que se iniciam com o mesmo prefixo, “psi”. A estratégia consistia em mostrar como se formou a idéia de doença mental, objeto fundamental desses saberes de pretensão científica, a partir da “análise da percepção da loucura”. Desse modo era evidenciado o quanto de histórico há sobre um fato tomado como natural, ou seja, a loucura como fato patológico. É neste livro que ele se utiliza pela primeira vez do termo arqueologia. Uma arqueologia do silêncio.


Entre maio e junho de 1984, Foucault publica os volumes 2 e 3 de sua História da Sexualidade: O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si. E promete aos mais próximos que o quarto e último livro, As Confissões da Carne estará concluído em mais um ou dois meses. Promessa que não será cumprida. É um Foucault cansado e abatido, vitimado pela AIDS, que promete. Já não há mais tempo.

No dia 3 de junho, Foucault passa mal e desmaia em seu apartamento. É levado para uma clínica por seu irmão, Denys. No dia 9 é transferido para o Hospital de Salpêtrière, sobre o qual discorreu longamente em História da Loucura, sendo no dia seguinte transferido para unidade de terapia intensiva. No dia 20, ele tem uma ligeira melhora, e já no quarto recebe seus amigos, se diverte e comenta a recepção de seus dois últimos livros. Mas seu quadro clínico se agrava, e na tarde de 25 de junho de 1984, Michel Foucault falece. A comoção é geral. Em 29 de junho, numa cerimônia reservada, seu corpo é sepultado no cemitério de Vendeuvre-du- Poitou, próximo de Poitiers, sua cidade natal. Na saída do caixão com seu corpo do hospital, diante de uma multidão à espera, uma última homenagem lhe é prestada. Gilles Deleuze, seu amigo de longa data, com a voz embargada de emoção, lê um trecho do prefácio de O Uso dos prazeres, revelador da estirpe de pensador que foi Foucault (e que tomamos aqui como conclusão):

“Quanto ao motivo que me impeliu, era muito simples. Espero que para alguns ele baste por si mesmo. É a curiosidade – a única espécie de curiosidade, em todo o caso, que vale a pena praticar com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas aquela que permite se desligar de si mesmo.

[...] O que é, pois, a filosofia – quero dizer a atividade filosófica – se não é o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo. E se ela não consiste, ao invés de legitimar que já sabemos, em tentar saber como e até que ponto seria possível pensar diferentemente.”

Fonte: leituras da História

Maria Antonieta

A última Rainha da França
Evelyne Lever


















A lembrança mais forte acerca de Maria Antonieta, rainha da França, é que teria sugerido ao povo faminto que comesse brioches, já que não havia pão. E que por conta de desatinos como esse, teve a cabeça decepada pela guilhotina da Revolução Francesa.

Para quem se interessar em conhecer mais a fundo a história da esposa de Luís XVI, vale a pena conferir Maria Antonieta: a última rainha da França. O livro, lançado este ano(2004) pela Editora Objetiva, é fruto de uma exaustiva pesquisa feita pela historiadora Evelyne Lever. Para compor um retrato não apenas da rainha, mas também das questões políticas da Europa no século XVIII, a autora baseou-se em documentos oficiais e cartas de pessoas que compartilharam da intimidade de Maria Antonieta e de sua família, tanto na corte de Viena, onde ela nasceu, quanto na corte francesa.

De tão detalhado, o relato chega a ser um pouco cansativo. O livro conta a história da rainha desde o seu nascimento até a morte. Primeiro, os dias felizes em Viena, com a família, em um estilo de vida muito mais simples do que as inumeráveis exigências de protocolo e etiqueta que precisaria seguir na França. A autora deteve-se em detalhes como as roupas usadas por Maria Antonieta, os pratos que compunham suas refeições e até os diálogos entabulados com as pessoas que lhe eram próximas. Alguns desses detalhes poderiam ter sido suprimidos, bem como uma certa forma de narrativa muito descritiva. Percebe-se, é claro, uma intenção em comprovar os fatos relatados, o que diferencia essa biografia de outras obras mais fantasiosas.

Apesar de não focar exatamente nos aspectos políticos da França e da Europa do século XVIII, é impossível falar de Maria Antonieta sem contextualizar a época em que viveu. A abordagem política fica mais presente quando as atitudes da rainha começam a servir de motivo para as revoltas populares que há muito já se previam. A mistura de egoísmo, arrogância, ingenuidade e futilidade ajudaram a formar uma imagem dela para o povo e seus desafetos que refletia o comportamento da nobreza francesa em geral. Privilégios às pessoas de seu interesse, preocupações com as intrigas da corte, um modo de vida luxuoso e dispendioso e uma completa alienação dos problemas do povo e também das implicações políticas de seus atos, contribuiram para levar a rainha à guilhotina.

Mas o livro não se atém apenas aos defeitos: mostra uma mulher corajosa, de personalidade, prejudicada pela pressão e pela chantagem emocional exercida pela mãe, a rainha da Áustria, mesmo à distância. As atitudes tomadas por Maria Antonieta na corte muitas vezes foram vistas – e apresentadas – como traição. Por conta de sua alienação e do desejo de levar a vida da maneira que lhe interessava e agradava, a rainha não percebia as implicações negativas de seus atos junto ao Rei e aos ministros, quando tentava, em vão, obter posições privilegiadas para as intenções políticas do império austríaco.

Apesar da dificuldade inicial do casamento com Luís XVI, eles tornaram-se um casal unido, inclusive na alienação e na ingenuidade. Enquanto ela se preocupava com os divertimentos e com uma tentativa de viver uma outra vida através da encenação de peças teatrais, na qual era um dos personagens, o rei esquecia-se da vida e dos problemas do país nas caçadas e nas suas oficinas de trabalhos manuais com madeira e ferro. Nenhum dos dois quis ver o quer acontecia a sua volta.

Na verdade, eles não podem ser culpados. Reclusos na vida da corte, tanto Luís quanto Maria Antonieta não foram incentivados a conhecer mais sobre o que acontecia no mundo iluminista, sobre a realidade, sobre os problemas do país. Apesar do esclarecimento da época, a monarquia ainda era vista como algo divino, independente da vontade dos súditos. Por isso a recusa do rei, até o final, em aceitar uma constituição e uma posição menos poderosa nessa nova forma de governo. Por conta dessa teimosia, tanto ele quanto a rainha acabaram sendo acusados e executados como traidores da França.

A imagem de Maria Antonieta, denegrida durante a Revolução Francesa, foi reabilitada após sua morte. Em outro extremo, foi considerada a Rainha Mártir, por seu sofrimento na prisão e na execução. Atualmente, o que a autora de sua biografia propõe é que se veja a rainha nem como uma coisa, nem como outra. Apesar de fútil, egoísta e alienada, ela foi mais o bode expiatório de uma situação da qual apenas fazia parte, mas não poderia ser considerada responsável. Por outro lado, sua coragem e sua lealdade à família fazem dela uma personalidade a ser admirada.

De todas as "lendas" sobre Maria Antonieta, uma parece ser verdadeira: ela teria tido um relacionamento com um nobre sueco, devido à dificuldade em manter uma vida sexual e amorosa normal com o rei. Por outro lado, a história dos brioches não é verdadeira. Teria sido contada por Rousseau, mas referia-se a outra pessoa. Segundo o livro, por mais alienada que fosse, nem Maria Antonieta teria falado uma asneira tão grande.

Por Adriana Baggio
Fonte original: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=1445